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Em O caminho de Abraão jornalista e escritor Jamil Chade mergulha na realidade da vida dos imigrantes e da periferia, revelando o debate sobre a identidade nacional diante da conquista da Copa de 98

20 anos depois, o assunto volta a dominar o cenário europeu  

À medida que a França se prepara para a final da Copa do Mundo, uma vez mais o debate sobre a imigração e as periferias das grandes cidades reaparece nos meios académicos, na imprensa e mesmo entre políticos. Formada por jogadores filhos de imigrantes e da periferia, a seleção francesa é um retrato de uma nova sociedade europeia, que vive uma encruzilhada. 

Em seu novo livro, O caminho de Abraão, o jornalista e escritor Jamil Chade mergulha na realidade dessa parcela da população, retratando as contradições, desafios e sonhos de imigrantes às margens da sociedade europeia. "Quando esses jogadores conquistam importantes vitórias, são usados como exemplos de uma integração que funciona. Quando perdem, são questionados por sua lealdade questionável vis-a-vis o país que lhes acolheu", diz Chade. 

"As vitórias da seleção da França, repleta de filhos de imigrantes, tem sido um golpe duro contra o discurso xenófobo que ganha força pela Europa", afirma o escritor. 

"Política e futebol são indissociáveis e a final desta Copa do Mundo, uma vez mais, vai escancarar essa realidade, obrigando os europeus a discutirem uma questão fundamental: quem somos nós hoje, no século 21", completa Chade.

Leia um trecho da obra, na voz da personagem Hagar: 

“A grande maioria de nós só desejava uma vida normal, capaz de acomodar todas as nossas complexidades e contradições. 

Marcado por essa angústia incessante entre duas culturas, o ano de 1998 foi determinante para nossa rua. Estávamos em plena Copa do Mundo e vibramos duplamente quando a seleção nacional se tornou campeã. A França não era apenas o melhor time do mundo, mas também estava repleto de astros com ascendência argelina e muçulmana. Naquele momento – e por algumas semanas, ao menos – não havia como esconder um sentimento que surgia em nosso bairro – algo como uma esperança insuspeita – de que, finalmente, os franceses “de cima” reconheceriam a nossa existência e nos con- siderariam seus pares. Afinal, a maior conquista do esporte daquele país viera, justamente, dos filhos de seus muitos bairros periféricos, negligenciados e esquecidos. 

Vestindo uma mesma camisa, Marcel Desailly, Youri Djorkaeff, Christian Karembeu e o louro Emmanuel Petit se uniam para uma só conquista. A tese de um país miscigenado que poderia funcionar finalmente ganhava espaço. Era a França “black-blanc-beur”. 

Entre todos os jogadores da seleção, era Zinédine Yazid Zidane o nosso símbolo maior. No dia 12 de julho daquele ano, lembro-me de ver na TV como a multidão numa Champs-Elysées lotada gritava: “Zizou président!”. Ele que, como todos nós, havia nascido em Marselha e cujos pais vinham de Bejaia, na região da Kabylie, na Argélia. O pai de Zidane, Smaïl, cuidava de ovelhas em sua cidade natal e, nos anos 1950, decidiu atravessar o Mediterrâneo. Sua ideia era de voltar para a Argélia somente depois da declaração de independência. Entretanto, como muitos de nossos amigos do bairro, acabou ficando na grande cidade. Lá, Smaïl conheceu Malika, filha de argelinos e moradora de Marselha. Juntos, desistiram de retornar ao Norte da África e tiveram cinco filhos na França: Madjid, Farid, Nourredine, Lila e, claro, Zinédine, o futuro herói “francês”. 

Após a conquista da Copa, não faltavam senhores de nosso bairro tentando mostrar intimidade com a família Zidane, fosse contando histórias que os ligavam a um primo distante de Bejaia, fosse insistindo que Smaïl era cliente de algumas de suas lojas. 

A ilusão de uma integração entre as diferentes minorias era questionada apenas por vozes que, na época, pareciam tão radicais quanto os comentários de imãs que pediam uma guerra santa. Lembro-me da fúria que senti quando Jean-Marie le Pen questionou o sucesso da seleção “nacional”, dizendo que não tinha qualquer relação com a França, pois haviam colocado um argelino para agradar o povo árabe, um jogador da Nova Caledônia que nem sequer cantava o hino francês e alguns negros para satisfazer as pessoas das Antilhas. 

De todo modo, eu estava determinada a ignorar a guerra que era alimentada por ambos os lados”.


Autor: Redação
Fonte: Editora Planeta

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