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Jovem, presa preventivamente por 6 anos, morre de câncer após ser absolvida

Recentemente, foi noticiada a morte de Damaris Vitória Kremer da Rosa, de 26 anos, por câncer de colo do útero, dois meses após ter sido absolvida da acusação de participação em homicídio qualificado.

O caso de Damaris, jovem gaúcha presa preventivamente por quase seis anos e absolvida dois meses antes de sua morte, representa um marco doloroso na Justiça Brasileira e exige profunda reflexão sobre os limites e as responsabilidades do sistema de justiça criminal.

Damaris foi presa em 2019, aos 20 anos, acusada de envolvimento em um homicídio. A acusação baseava-se em elementos frágeis, sem provas materiais que sustentassem sua participação direta no crime. Durante o processo, permaneceu encarcerada preventivamente, mesmo diante de sucessivos pedidos de liberdade e alertas sobre seu estado de saúde. A prisão preventiva, que deveria ser medida excepcional, tornou-se punição antecipada.

Ao longo dos anos, Damaris apresentou sintomas graves: dores intensas, sangramentos e perda de peso que indicavam um quadro clínico preocupante. A defesa apresentou documentos médicos, receituários e relatos consistentes, mas os pedidos foram indeferidos sob a alegação de ausência de laudos formais. A escuta institucional falhou, e o sofrimento físico foi ignorado.

Em março de 2025, Damaris foi diagnosticada com neoplasia maligna do colo do útero. A prisão foi convertida em domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica. Mesmo debilitada, ela passou a realizar exames e tratamentos sob vigilância. Em agosto de 2025, foi absolvida por falta de provas. Em 26 de outubro de 2025, morreu. A justiça chegou, todavia, tarde demais.

Chamam a atenção neste caso variadas ocorrências: a idade da jovem, a gravidade da doença que a acometeu, a morte após a absolvição, dentre outras. Mas, possivelmente, o que mais se destaca é a presença do odioso erro judiciário.

E este erro judiciário se configurou pela manutenção de uma prisão preventiva por seis (6) anos!

O erro judiciário, neste contexto, não se resume à condenação indevida, mas à manutenção de uma prisão injusta, à negligência institucional e à violação da dignidade humana.

A presunção de inocência, prevista no art 5º, inciso LVII da Constituição Federal, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Ninguém deve ser tratado como culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. No caso de Damaris, esse princípio foi relativizado, e sua liberdade foi cerceada por quase seis anos sem condenação.

A prisão preventiva, embora prevista no ordenamento jurídico, deve ser aplicada com cautela e fundamentação concreta. A banalização dessa medida compromete o equilíbrio do processo penal e expõe o indivíduo a riscos desproporcionais. Damaris foi privada de liberdade por tempo superior ao que cumpriria se condenada.

Sem entrar na discussão dos elementos que justificavam tal prisão, por ser preventiva, por sua natureza, por seu conceito de criação e existência, por sua essência e razão de ser no processo penal, nenhuma prisão preventiva poderia durar tanto tempo.

Depois da Lei nº 12.403/2011, que trouxe as medidas cautelares alternativas à prisão preventiva, lei esta que relegou a último plano a aplicação do citado tipo prisional, o que justifica seu uso tão recorrente?

E o que fundamentaria um encarceramento tão longo, que praticamente configurou o cumprimento de uma sentença condenatória?

O dano, neste caso, vai muito além da privação da liberdade em si. A prisão, que deveria ser a última e excepcional medida, tornou-se, por sua duração desproporcional, o fator determinante para a perda de seis anos da vida de uma jovem e, tragicamente, para a impossibilidade de tratamento adequado de sua saúde. A morosidade da Justiça não apenas falhou em aplicar a lei, mas contribuiu decisivamente para a consumação de uma injustiça irreparável.

A responsabilização do Estado por erros judiciais ainda é tímida no Brasil. Mesmo diante de falhas comprovadas, raramente há reparação efetiva. É necessário fortalecer mecanismos de controle, revisão e responsabilização institucional, com foco na prevenção e na justiça restaurativa.

A reparação civil por erro judiciário, prevista no art. 5º, inciso LXXV da Constituição Federal, é uma medida essencial para reconhecer o dano causado e oferecer algum tipo de compensação à vítima ou seus familiares.

Embora nenhuma indenização seja capaz de restituir a vida de Damaris Kremer, o reconhecimento formal do erro e a responsabilização do Estado representam um passo importante na construção de uma justiça restaurativa. A reparação não é apenas patrimonial ela é simbólica, ética e social.

Algo vai muito mal na nossa prática judiciária forense – e não é a inexistência de leis, como muitos dizem! O que caminha mal é a falta de compreensão das leis, aliada ao desconhecimento da função do processo penal (que caminha mais ao som dos tambores midiáticos do que das lições da doutrina e da jurisprudência); caminha mal porque normas e decisões são criadas e determinadas para agradar à opinião pública, para atender a requisitos ideológicos e não para cumprir o chamado da Justiça.
O trágico desfecho de Damaris Vitória Kremer da Rosa é um marco indelével. Não pode ser esquecido porque expõe, em sua forma mais cruel, a falência do sistema de justiça criminal. Ela é o rosto da presunção de inocência violada, representando as milhares de vidas ceifadas e silenciadas pela morosidade e negligência institucional. Seu nome deve ser gravado na memória nacional não apenas como um símbolo de dor e resistência, mas como a urgente prova do erro judiciário que transformou uma medida excepcional — a prisão preventiva — em uma punição de seis anos, custando-lhe a liberdade, a saúde e, por fim, a vida.

Porém, o que traz mais desesperança é ver que casos como este, desta desaventurada e injustiçada jovem, não provocarão a devida reflexão nos responsáveis pela guarda do precioso instrumento que deveria ser o direito processual penal.

João Ibaixe Jr. Advogado criminalista e ex-Delegado de Polícia. Doutor em Filosofia (UERJ) e mestre em Direito (PUC/SP), é coordenador do Grupo de Criminologia Filosófica (GCRIMFIL). 


Autor: Advogado e ex-delegado de polícia, João Ibaixe Jr.
Fonte: Gabriela Romão – RV Comunicação

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