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Renato Ayres Martins – professor universitário
   
     
 


20/07/2010

Renato Ayres Martins – professor universitário
O instituto do laudêmio no cenário atual

Existem, em algumas cidades litorâneas, inúmeros imóveis foreiros à União Federal, por se localizarem em terreno de marinha, o que obriga seus detentores o pagamento do foro anual e, quando da transferência do domínio, também do laudêmio.

Muitos ignoram, porém, que o ordenamento jurídico assegura o direito à remição do foro em determinados casos, cujo pleito deve ser submetido ao Departamento de Patrimônio da União, na forma do art. 100 do Decreto-lei n.º 9.760/46.  Esse procedimento envolve a avaliação técnica do imóvel e a elaboração de cálculos para a aquisição do domínio direto, com a posterior remessa do processo administrativo à Secretaria do Patrimônio da União, para aprovação da alienação e autorização da lavratura do correspondente contrato de compra-e-venda.

Nada obstante a previsão legal nesse sentido, a Procuradoria da Fazenda Nacional vem relutando em celebrar o aludido instrumento sob o pretexto de que seria necessária prévia expedição de decreto autorizativo por parte do Presidente da República, nos termos do art. 103 do Decreto-lei n.º 9.760/46, com redação dada pelo art. 32 da Lei n.º 9.636/98, cujo teor é abaixo transcrito:

"Art. 103 - O aforamento se extinguirá por inadimplemento de cláusula contratual, por acordo entre as partes, ou, a critério do Presidente da República, por proposta do Ministério da Fazenda, pela remição do foro nas zonas onde não mais subsistam os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico.”

Em suma, advoga a Procuradoria da Fazenda Nacional que a formalização do negócio deve ficar condicionada à definição legal dos critérios para estabelecimento da faixa de segurança – mesmo quando já reconhecido pelos órgãos competentes que o imóvel se situa fora da dita área e do perímetro militar –, bem como que supostamente não teria sido recepcionado o art. 90 da Lei n.º 7.450, de 23/12/85 pela atual carta constitucional, ficando sem definição, assim, o que seja “faixa de segurança”.

Entretanto, o mero reconhecimento oficial de que o imóvel se encontra fora da área em cujo perímetro exista motivos para a manutenção do aforamento (faixa de 100 metros da atual orla marítima e de 1.320 metros de qualquer estabelecimento militar) é suficiente para autorizar a remição do foro.

Historicamente, os terrenos de marinha tinham sua justificativa na defesa costeira e na segurança do país, sendo neles construídos alfândegas, entrepostos, faróis e obras contra possíveis invasões estrangeiras. Com o passar do tempo, porém, o valor patrimonial das marinhas sobrepujou sua utilidade como área de defesa e reserva para serviços públicos, fenômeno esse que foi percebido tanto pelo Constituinte de 1988 quanto pelo legislador ordinário, que inseriu, no contexto social da época, instrumentos para a alienação dos imóveis da União não afetados ao serviço público (Lei n.º 9.636, de 15/05/98).

Com efeito, o art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“ADCT”) previu expressamente a possibilidade de remição do foro, mantendo o domínio da União apenas sobre determinados imóveis urbanos relativamente aos quais fosse justificasse a medida por questões de segurança ou mesmo de soberania, conforme se observa do teor do dispositivo abaixo transcrito:

"Art. 49 – A lei disporá sobre o instituto da enfiteuse em imóveis urbanos, sendo facultada aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direito, na conformidade do que dispuserem os respectivos contratos.

(...)§ 3º. A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima.” (g.n.)

Em outras palavras, a vontade do poder constituinte originário, que deve ser respeitada pelos interpretes do texto magno, foi no sentido de permitir a remição sobre os imóveis situados fora da faixa de segurança, vale dizer, além da faixa de 100 metros da atual orla marítima e do círculo de 1.320 metros de qualquer estabelecimento militar.

Apesar de tudo isso, a representação judicial da União vem manifestando entendimento no sentido de que o pedido de remição do foro não pode ser apreciado no âmbito administrativo por supostamente faltar definição do que seja “faixa de segurança”, a qual, segundo é também por ela professado, somente poderia ser veiculada por lei formal.

O equívoco desse entendimento é, d.v., evidente, pois tanto já existem parâmetros técnicos que permitem avaliar a faixa de segurança – conforme acima destacado –, como também não há qualquer exigência no texto constitucional a que a citada faixa seja definida em lei. Muito ao contrário, o que o art. 49 do ADCT estipulou foi meramente que o instituto da enfiteuse deveria ser tratado em lei – o que efetivamente foi feito, como se vê das Leis n.ºs Lei n.º 7.450/85 e 9.636/98 –, mas o seu § 3º, muito ao contrário, é norma auto-aplicável, pois além de não fazer qualquer referência à regulamentação da matéria por norma posterior, enfaticamente explicita um comando que se tornou eficaz a partir do momento em que foi promulgada a Constituição de 1988.

A constatação da dependência do parágrafo frente ao caput do dispositivo não surge só pelo aspecto formal em si da norma, mas deve decorrer de seu próprio teor. Não é nova a afirmação da autonomia do parágrafo frente ao caput, como se colhe de tradicional obra do professor José Afonso da Silva:

"Todo parágrafo tecnicamente bem situado (e este não está, porque contém autonomia de artigo) liga-se ao conteúdo do artigo, mas tem autonomia normativa. Veja-se, por exemplo, o parágrafo primeiro do mesmo artigo 192.

Ele disciplina o assunto que consta dos incisos I e II do artigo, mas suas determinações, pôr si, são autônomas, pois uma vez outorgada qualquer autorização, imediatamente ela fica sujeita às limitações impostas no citado parágrafo.

Se o texto em causa fosse inciso de artigo, embora com normatividade formal autônoma, ficaria na dependência do que viesse a estabelecer a lei complementar. Mas tendo sido organizado num parágrafo, com normatividade autônoma, sem ferir a qualquer previsão legal ulterior, detém eficácia plena e aplicabilidade imediata.

O dispositivo, aliás, tem autonomia de artigo, mas a preocupação, muitas e muitas vezes revelada ao longo da elaboração constitucional, no sentido de que a Carta Magna de 1988 não aparecesse com demasiado números de artigos, levou a Relatoria do texto a reduzir artigos e parágrafos e uns e outros, não raro, a incisos. Isso, no caso em exame, não prejudica a eficácia do texto.”

A preocupação do Constituinte de 1988 em evitar que o texto contivesse número dilatado de artigos também foi observada pelo Ministro Marcos Aurélio de Melo, no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 234.441-RS, em 04/03/1999:

“A única justificativa para o lançamento da norma em parágrafo é notória fuga do legislador constituinte de 1988 à elaboração de um diploma constitucional com número excessivo de artigos.”

A problemática também não escapou do enfrentamento doutrinário do Juiz Estadual Mauro Nicolau Júnior:

"Num mesmo artigo de lei, ou da Constituição, podemos ter várias regras, independentes umas das outras. O que o parágrafo tem de comum com o caput é que, por força de alguma lógica formal de organização extrínseca dos assuntos, os tópicos do caput (matéria geral nele tratada), é também matéria dos parágrafos. Isso, nem sempre, aliás, acontece. Depende de maior ou menor organização mental do redator. Muito contingentemente, no momento da redação, e mesmo assim, nada impede que a regra do parágrafo seja impeditiva do que consta do caput."

Para arrematar, transcreve-se entendimento do advogado Gustavo Vaz Salgado no mesmo sentido:

"Isso sem falar no fato de que o dispositivo em análise possui normatividade autônoma, disciplinando, ele mesmo, o seu raio de abrangência e eficácia.

O parágrafo não pode é tratar de matéria alheia ao capítulo em que está inserido, mas pode, perfeitamente, disciplinar, de forma soberana e independente, algum aspecto do tema tratado na cabeça do artigo, inclusive restringindo-lhe o exercício.

Tome-se como exemplo mais patente o art. 5º da mesma Carta, que trata dos direitos e garantias fundamentais, cujo caput não guarda qualquer relação intrínseca com os seus incisos, pois estes, além de tratarem de temas variados, possuem, cada um o seu raio de abrangência e de eficácia, o que lhes empresta autonomia plena em relação ao caput. Os exemplos a partir daí multiplicam-se.

Infere-se da norma contida no citado art. 49, § 3º, do ADCT que nem todo terreno de marinha se submete ao regime obrigatório de aforamento, senão que apenas aqueles localizados dentro da faixa de segurança (100 metros da costa marítima ou 1.320 metros do raio de fortificações militares), podendo ser plenamente alienado sem necessidade da superveniência de nova lei ou mesmo de autorização do chefe do Executivo ou do Ministério da Fazenda, visto que a competência para decidir pela remição é tão-só do diretor do Serviço de Patrimônio da União (SPU), nos termos do Decreto-lei n.º 9.760/46, in verbis:

"Art. 122 – Autorizada, na forma do disposto no art. 103, a remissão (sic) do aforamento dos terrenos compreendidos em determinada zona, o SPU notificará os foreiros, na forma do parágrafo único do art. 104, da autorização concedida.

Parágrafo único – Cabe ao diretor do SPU decidir sobre os pedidos da remissão (sic), que lhe deverão ser dirigidos por intermédio do órgão local do mesmo Serviço.”

Aliás, tanto a remição não depende de ato da chefia do Executivo ou do Ministério da Fazenda que, visando a desfazer os possíveis mal entendidos resultantes da interpretação equivocada do art. 103 do citado Decreto-lei, foi aprovada em 31/05/2007 a Lei n.º 11.481, que modificou a redação do dispositivo de molde a tornar clara essa realidade, passando ele a apresentar a seguinte redação:

Art. 103. O aforamento extinguir-se-á:

I - por inadimplemento de cláusula contratual;

II - por acordo entre as partes;

III - pela remissão (sic) do foro, nas zonas onde não mais subsistam os motivos determinantes da aplicação do regime enfitêutico;

IV - pelo abandono do imóvel, caracterizado pela ocupação, por mais de 5 (cinco) anos, sem contestação, de assentamentos informais de baixa renda, retornando o domínio útil à União; ou

V - por interesse público, mediante prévia indenização.”

A regra, portanto, confirmada pela Lei n.º 11.481/2007, é a de que, havendo interesse público sobre o terreno de marinha, mantém-se o domínio pleno com a União. Não havendo tal interesse, aliena-se o domínio útil, pelo aforamento, mantendo-se com a União o domínio direto; sendo o terreno de marinha situado fora da faixa de segurança, como é o caso dos autos, procede-se a alienação plena, como de resto ocorre com os demais bens dominicais.

Alvitrar o contrário, importaria em genuíno paradoxo, como advertido em obra doutrinária por Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo a qual a transferência dos terrenos de marinha para particulares não repugna o direito, “porquanto desde a constituição da enfiteuse já não dispõe mais a União de domínio útil e não pode, pois, sob o título de proprietário, com simples domínio direto, utilizá-los na defesa da costa, e se as aforou foi por entender que ditas áreas não eram requeridas para a defesa da terra”.

Reconhecendo o Serviço de Patrimônio da União não persistirem mais as razões que orientaram o aforamento, deve ser garantida a remição do foro, sob pena de não se assegurar o tratamento especial que o legislador objetivou conferir aos terrenos de marinha situados fora da área de segurança.

Em razão disso, é absolutamente despicienda a intervenção do Executivo visando a esclarecer o que já é de todos sabido (a delimitação da faixa de segurança), como se houvesse alguma imprecisão terminológica a ser sanada, da mesma forma como é desnecessária a aprovação de lei que venha a professar aquilo que já está definido no ordenamento. Admitir o contrário, i.e., que a eficácia do § 3º do art. 49 do ADCT estaria a depender da superveniência de lei, importaria em dar maior estatura a esta do que à própria Constituição, cometendo o equívoco já denunciado em âmbito doutrinário pelo hoje Ministro Eros Roberto Grau:

"... pretender que uma norma constitucional, que contém um comando proibitivo e sua respectiva sanção, só opere seus efeitos após subvertência da lei ordinária que nada lhe acrescentará, é subverter a hierarquia das normas jurídicas, conferindo-se a lei força maior que a Constituição."

A Constituição toma o termo “faixa de segurança” em sua acepção comum, e em termos não só meramente vocabulares como também legislativos (art. 100 do Decreto-lei n.º 9.760/46 e art. 90 da Lei n.º 7.450/85) é possível defini-la reputando naquele perímetro apenas os imóveis situados a 100 metros da orla marítima e dentro do círculo de 1.320 metros de estabelecimentos militares.

Com efeito, muito embora haja indeterminação em algumas normas, não se desconhece que estas possuem três zonas periféricas, quais sejam: zona da certeza positiva, zona da certeza negativa e zona de penumbra. No caso concreto, a necessidade de manifestação do Executivo somente se daria se a determinação da “faixa de segurança” estivesse circunscrita àquela zona de incerteza da aplicação da norma, propiciando à Administração uma dose de liberdade e de valoração quanto à qualificação jurídica dos fatos, o que, todavia, não ocorre, diante do que consta nos já citados art. 100 do Decreto-lei n.º 9.760/46.

Nesse sentido, afirma Gustavo Binenbojm: “Quando é possível identificar os fatos que, com certeza, se enquadram no conceito (zona de certeza positiva) e aqueles que, com igual convicção, não se enquadram no enunciado (zona de certeza negativa), o controle jurisdicional é pleno.”

Em outras palavras, somente há zona de penumbra na norma quando ela ostenta palavras vagas ou ambíguas, comportando pluralidade de significados. Quando não for esse o caso, será legítima sua concretização imediata pelo Judiciário, cuja atuação não representará intervenção proscrita pelo ordenamento, senão que, antes, simples e direta aplicação do formalismo jurídico da hermenêutica tradicional.

Não haverá, no controle jurisdicional vindicado, qualquer intervenção indevida do Judiciário na esfera de competência do Executivo, pois não se trata aqui de discussão em torno da conveniência ou da oportunidade da definição dos critérios para estabelecimento da faixa de segurança – os quais já existem –, mas do controle da ilegalidade do ato da Administração, cuja omissão resulta de interpretação equivocada do texto constitucional, em especial por não levar em conta o desinteresse pela manutenção do regime de enfiteuse sobre imóveis distantes mais de 100 metros da orla marítima e de 1.320 metros de estabelecimentos militares.

De acordo com a especificidade contida nos dispositivos legais acima citados, sequer se pode cogitar que o termo “faixa de segurança” ostentaria atualmente um conceito jurídico indeterminado.

É que, repita-se, somente se situa na zona de penumbra aquele conceito que ultrapassa os limites parciais explicitados pelos enunciados do instituto e pela conjugação de todo o sistema jurídico no que se refira ao núcleo conceitual, exatamente ao contrário do que se dá com relação ao que seja “faixa de segurança”, cuja legislação delimita sua exata extensão e compreensão de modo unívoco, permitindo, da leitura do citado dispositivo, estabelecer as fronteiras limítrofes do que esteja e do que não esteja naquele perímetro.

Além disso, é pacífico o entendimento quanto à possibilidade de controle jurídico do núcleo do conceito, pois recusar tal possibilidade seria convertê-lo em algo despropositado, importando o mesmo que não aplicar a lei que o haja formulado, sendo incumbência do intérprete buscar elementos densificantes da vontade constitucional que já se encontrem dentro do sistema jurídico.

Assim, ainda que se admita que determinados conceitos gozam de certa dose de indeterminação, não se pode deixar de reconhecer, mesmo quanto a estes, a existência de situações em que a aferição do conceito afasta qualquer carga de discricionariedade do administrador, ante a presença de fatos concretos a tornar, sob o ponto de vista do homem médio, induvidosa a realidade de que se cogita.

Não há discricionariedade quando existe apenas uma opção razoável no caso concreto, visando à satisfação da finalidade imposta pela lei. Ao contrário, quando o exame do conceito jurídico revelar de pronto a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, cabe ao Juiz aplicar a norma ao caso concreto, porque a ele é atribuído o poder da interpretação adequada da lei.

Daí porque aceitar as manifestações da Procuradoria da Fazenda Nacional na linha acima destacada implicaria iniludivelmente em anular a vontade do legislador constituinte expressa no § 3º do art. 49 do ADCT, além de ignorar os termos do art. 100 do Decreto-lei n.º 9.760/46 (e também do art. 90 da Lei n.º 7.450/85, que, ainda que revogado, contém importante referência ao perímetro caracterizador da faixa de segurança). E, como se não bastasse, implicaria também em baralhar os significados de discricionariedade e de conceito jurídico indeterminado, muito embora haja visíveis distinções entre ambos, como reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência.

Fonte: Galeria
Autor: Renato Ayres Martins
Revisão e edição: de responsabilidade da fonte

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